Avanços, lacunas e a quadratura do círculo do Zero Draft da Rio+20

por .José Eustáquio Diniz Alves, Doutor em demografia e professor titular do mestrado em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE; expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. E-mail: jed_alves(at)yahoo.com.br .

A ONU divulgou no dia 10 de janeiro de 2012 o Rascunho Zero do documento base de negociação da Rio + 20, o chamado Zero Draft, que será objeto de discussão nos próximos meses antes de se chegar ao documento final que será aprovado pelos Chefes de Estado, em junho. Evidentemente, o documento final da Rio + 20 vai ser um produto da atual conjuntura mundial e é claro que será uma declaração que vai refletir o nível atual de compromisso da comunidade internacional com a população, a economia e o meio ambiente. Certamente não será um documento revolucionário, mas espera-se que seja um texto avançado.

Logo no Preâmbulo, o documento explicita que os Chefes de Estado estão dispostos a trabalhar juntos por um futuro próspero, seguro e sustentável para o povo e o planeta:

“Reafirmamos a nossa determinação para libertar a humanidade da fome e queremos, por meio da erradicação de todas as formas de pobreza, lutar por sociedades iguais e inclusivas, por estabilidade econômica e crescimento que beneficie a todos”; “Estamos empenhados em empreender todos os esforços para acelerar o progresso na realização dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio até 2015, melhorando, assim, a vida das pessoas mais pobres”; “Estamos também empenhados em reforçar a cooperação e abordar as questões atuais e emergentes de uma maneira que aumentará as oportunidades para todos, centrada no desenvolvimento humano, preservando e protegendo o sistema de suporte de vida da nossa casa comum, o nosso planeta compartilhado”; “Pedimos por ações ousadas e decisivas sobre o objetivo e os temas da conferência. Renovamos nosso compromisso com o desenvolvimento sustentável e expressamos nossa determinação em buscar a economia verde no contexto do desenvolvimento sustentável e da erradicação da pobreza. Afirmamos com ainda mais ênfase a nossa vontade de reforçar o quadro institucional para o desenvolvimento sustentável. Em conjunto, nossas ações devem preencher as lacunas de implementação e alcançar uma maior integração entre os três pilares do desenvolvimento sustentável – econômico, social e ambiental” (p.3).

Estes princípios apresentados, logo na definição dos cenários, representam um avanço em relação a documentos anteriores.

A definição inical do Relatório Brundtland (1987) de desenvolvimento sustentável dava ênfase apenas aos aspectos intergeracionais: “o desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades”. Mas o desenvolvimento sustentável precisa ser economicamente inclusivo e socialmente justo. Neste sentido, o Zero Draft dá destaque correto à erradicação da fome e da pobreza no mundo e indica a necessidade de reforçar o quadro institucional para o desenvolvimento sustentável.

Além disto o Zero Draft aponta para a construção da economia verde “aquela que resulta em melhoria do bem-estar das pessoas devido a uma maior preocupação com a equidade social, com os riscos ambientais e com a escassez dos recursos naturais”. A economia verde está relacionada diretamente a mudanças climáticas: produção e consumo com baixo carbono, eficiência energética, energia renovável, cidades sustentáveis, etc. Ou seja, o documento articula o conceito de “economia verde” como um complemento do “desenvolvimento sustentável” em seus 3 pilares – econômico, social e ambiental. Evidentemente, os dois conceitos são entendidos dentro da lógica das relações sociais reguladas pela propriedade privada, que condiciona o modo de produção da vida material em praticamente todos os países que estarão presentes na Rio + 20.

O documento reconhece que a “insegurança alimentar, as alterações climáticas e a perda de biodiversidade têm prejudicado os ganhos de desenvolvimento” e não omite que “Estamos profundamente preocupados com o fato de cerca de 1,4 bilhão de pessoas ainda viverem na pobreza extrema e de um sexto da população mundial ser subnutrida, e com as pandemias e epidemias, que são uma ameaça onipresente” Para enfrentar estes problemas, diz: “Reconhecemos a responsabilidade particular em fomentar padrões de consumo e de produção sustentáveis”. Nas ações para o acompanhamento, o documento destaca as seguintes áreas prioritárias:

  • segurança alimentar;
  • direito à água potável limpa e segura e ao saneamento e importância crítica dos recursos hídricos para o desenvolvimento sustentável;
  • energia Sustentável para Todos;
  • abordagem integrada e holística da urbanização e da construção de cidades sustentáveis;
  • Empregos verdes e inclusão social;
  • conservação, manejo sustentável e distribuição equitativa dos recursos marinhos e dos oceanos;
  • redução dos riscos de desastres naturais;
  • mudança climática como um dos maiores desafios da contemporalidade;
  • deter e reverter o desmatamento e degradação florestal e promover o uso sustentável e a gestão das florestas, bem como a sua conservação e restauro;
  • as montanhas são extremamente vulneráveis às mudanças globais como as alterações climáticas, e muitas vezes são o lar de comunidades, incluindo dos povos indígenas, que, mesmo tendo desenvolvido utilização sustentável dos seus recursos, ainda são muitas vezes marginalizados;
  • intensificar os esforços no sentido de um regime mais forte, coerente, eficaz e eficiente internacional de produtos químicos durante o seu ciclo de vida;
  • acesso por todas as pessoas à educação de qualidade é uma condição essencial para o desenvolvimento sustentável e inclusão social;
  • o desenvolvimento sustentável está ligado e depende de contribuições econômicas das mulheres, tanto formal como informal e da maior equidade de gênero.

Embora esta lista de temas e ações seja grande, existe uma lacuna injustificável no documento que é a ausência do tema POPULAÇÃO (humana e não-humana).

O Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e a comunidade demográfica mundial fizeram diversos documentos mostrando a necessidade de incorporar as questões da dinâmica demográfica no documento final da Rio + 20. O desenvolvimento sustentável não pode ignorar o número, as características e o comportamento das pessoas e das subpopulações que mais sofrem e daquelas que mais contribuem para a degradação ambiental. Também não se pode ignorar que a percentagem da população urbana vai passar de 50% para 70% nas próximas décadas e que existe cerca de 215 milhões de mulheres em idade fértil, no mundo, sem acesso aos métodos de regulação da fecundidade e sem acesso aos serviços de saúde sexual e reprodutiva. Somente com ações demográficas e políticas de cidadania se pode vencer a “armadilha da pobreza”.

Em relação à população não-humana, existe uma campanha de mobilização global da Sociedade Mundial de Proteção Animal (WSPA) pedindo a inclusão do tema do bem-estar animal na agenda da Rio+20. Além dos direitos dos animais a campanha pretende esclarecer o consumidor sobre a origem do produto que ele consome e as condições como estes animais são tratados. A Carta da Terra, por exemplo, já incorporou os seguintes pontos:

  • Impedir crueldades aos animais mantidos em sociedades humanas e protegê-los de sofrimento;
  • Proteger animais selvagens de métodos de caça, armadilhas e pesca que causem sofrimento extremo, prolongado ou evitável;
  • Evitar ou eliminar ao máximo possível a captura ou destruição de espécies não visadas;
  • Tratar todos os seres vivos com respeito e consideração.

Por fim, é preciso fazer duas ressalvas importantes. Primeira ressalva: o documento final da Rio + 20 não tem força de lei, automática, nos diversos países do mundo. O item 9 do Zero Draft diz o seguinte: “Reconhecemos a necessidade de reforçar o desenvolvimento sustentável em nível global por meio de nossos esforços coletivos e nacionais, de acordo com o princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, e com o princípio do direito soberano dos Estados sobre seus recursos naturais” (p. 3).

Desta forma, os recursos naturais dependem da boa vontade dos Estados que possuem soberania nacional e podem, por exemplo, em nome do desenvolvimento econômico, destruir as fontes naturais da vida e da biodiversidade. É claro que a partir do documento a sociedade civil pode pressionar os governos a colocar em prática os objetivos aprovados no documento final da Rio + 20.

A segunda ressalva é mais complexa e envolve uma avaliação mais profunda dos conceitos de desenvolvimento sustentável e economia verde. Além de não ter metas e prazos bem estabelecidos, fica a dúvida até que ponto seria possível conciliar desenvolvimento sustentável e verde com o crescimento ilimitado da população e da economia sem afetar os limites naturais do planeta e as bases da biodiversidade?

Ou seja, qualquer continuidade do crescimento econômico do mundo, seja ele marrom ou verde, vai agravar, em menor ou maior grau, os problemas da degradação ambiental e das mudanças climáticas. Conceitos como o de “Estado Estacionário” ou “Decrescimento” nem foram mencionados. Dificilmente o documento final da Rio + 20 vai conseguir vencer o viés antropocêntrico e estabelecer os princípios ecocêntricos, o que, entretanto, não invalida os avanços apresentados.

Neste sentido, o Zero Draft é um documento bem intencionado e que certamente vai contribuir para mitigar os problemas ambientais mais graves do globo. Porém, está longe de apresentar uma solução efetiva para a sobrevivência da vida no Planeta, pois querer resolver os desafios ambientais da Terra dando continuidade ao modelo de crescimento econômico ilimitado da produção e do consumo é como tentar uma fórmula para solucionar o problema da quadratura do círculo, que a matemática já mostrou ser impossível.

 

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