Por trás do documento que pautará a Rio+20 oficial

 

Por Iara Pietricovsky, Comitê Facilitador da Sociedade Civil Brasileira para Rio+20, Instituto de Estudos Socioeconômicos. Publicado também aqui.

São 19 páginas, 133 repetições da palavra “sustentável” e 39 do adjetivo “verde”. O documento que servirá de base para os acordos e resultados da Rio+20 oficial da ONU – chamado de rascunho zero (“zero draft”) – foi publicado na última semana, em inglês (veja a versão em português). Seu texto e sua estrutura revelam uma tentativa enfática de estimular práticas menos danosas para o meio ambiente dentro do modelo econômico hoje vigente. Mas não questiona o caráter insustentável desse mesmo sistema de desenvolvimento.

Assim avalia a antropóloga Iara Pietricovsky, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e membro do Comitê Facilitador da Sociedade Civil Brasileira para a Rio+20. Claro: a simples constatação de quantas vezes uma palavra é utilizada num texto não permite uma análise aprofundada. No entanto, no caso do rascunho zero do documento final da Rio+20, a insistência nesses termos demonstra uma postura de manutenção do modelo atual de produção e de consumo, no qual o setor privado figura como ator principal.

Nesta entrevista, realizada por telefone poucos dias após a publicação do rascunho zero, Pietricovsky destrincha os muitos equívocos e poucos acertos da publicação da ONU na construção de uma base para as discussões que deveriam, em sua visão, culminar na transformação da economia atual. “Falo a partir da concepção de que, para se promover sustentabilidade, deve-se enfrentar o tema do modelo de desenvolvimento”, explica a antropóloga. “Posição que essa publicação não toma: logo no Preâmbulo [primeiro capítulo], o documento persiste no conceito de crescimento econômico, que em si é contraditório com a ideia de sustentabilidade ambiental.”

Como a ideia de crescimento econômico no modelo atual é incompatível com a noção de sustentabilidade ambiental?

Como se promove o crescimento sustentável com expansão agrícola, expansão urbana e industrial – aspectos intrínsecos ao modelo de desenvolvimento atual? Fazendo um paralelo com a nossa política nacional, no modelo hoje vigente, há a insenção de impostos para carros novos. E é esse modelo que se quer chamar de sustentável. Que ideia de crescimento é essa?

Você diz, então, que termos como economia verde e desenvolvimento sustentável são, no rascunho zero para a Rio+20, esvaziados?

Esse documento não questiona o padrão vigente de produção e de consumo capitalista. Esse padrão só é mencionado nos itens 26 e 107 da publicação [“Reconhecemos que uma economia verde no contexto de desenvolvimento sustentável (...) deve promover padrões de produção e consumo sustentáveis” e “Propomos que os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável possam incluir padrões de consumo e produção”]. Em todo o resto, afirmam-se compromisso com medidas paliativas: eficiência energética, reciclagem etc. As inovações produtivas “verdes” sugeridas ali são baseadas num comércio transcontinental e em “empregos verdes”, e não numa forma complementar de produção mais local, que não precisa atravessar o planeta, a baixo custo, mas sim baseadas na exploração do trabalho ou mesmo da escravidão humana e da depredação ambiental.

Como você avalia a reafirmação dos Objetivos do Milênio, que deverão ser cumpridos até 2015, segundo a ONU?

Os Objetivos do Milênio são uma cilada. Foram uma redução de todo o processo do ciclo social de conferências da ONU, que vem desde 1992 – na Rio 92 –, passando pela Conferência de Direitos Humanos de 1993, pela Conferência Mundial sobre Mulheres de 1995, pela Conferência Internacional sobre o Financiamento ao Desenvolvimento de 2002, pela conferência de Durban de 2002. Todos os acordos e tratados feitos durante esse ciclo foram reduzidos e reorganizados a partir do início da década de 2000, quando foram delimitados os Oito Objetivos do Milênio.

Por exemplo, em relação à mulher, o único ponto dos Objetivos do Milênio diz respeito à mortalidade materna [Objetivo 3]. Não se entrou nas questões da saúde reprodutiva da mulher ou do direito ao próprio corpo, que eram assuntos fundamentais à época e que ainda são. Os Objetivos do Milênio, nesse sentido, destruíram e reduziram todas as demandas políticas mais importantes das mulheres, ficou só a retórica.

Digo que os Objetivos do Milênio não serão atingidos até 2015, como defende o rascunho zero, porque é o que tem alertado anualmente o Social Watch – uma rede internacional de monitoramento dos tratados internacionais, em especial os oriundos da Conferência da Mulher, em Pequim, e da Conferência Social, em Copenhague, ambas nos anos 1990, do qual o Iesc faz parte. O Social Watch monitora esse ciclo social das Nações Unidas e construiu indicadores para medir se as metas estão sendo alcançadas. Já fizemos vários relatórios internacionais apontando que nenhum dos países atingiu ou deverá atingir essas metas. Como se pode afirmar que os Objetivos do Milênio vão ser atingidos se, ainda por cima, estamos desde 2008 numa época de crise, com contenção de gastos e uma virada conservadora de corte de direitos por parte de muitos governos, como a França, a Espanha, a Grécia, a Itália, Israel e os EUA? No Brasil, aparentemente alguns dos Objetivos do Milênio foram atingidos, como, por exemplo, a educação – todas as crianças estão virtualmente matriculadas na escola. Mas, se formos analisar a qualidade dessa educação, veremos que o Brasil não atingiu essa meta de verdade.

Você acha que esse documento demonstra a força do setor privado como ator principal na implementação dessa “economia verde”?

É justamente essa ênfase no setor privado que configura o subtexto do documento, juntamente com a falta de preocupação com o enfrentamento do modelo econômico vigente hoje. O setor privado ainda é tratado no mesmo grupo das organizações não-governamentais (ONGs), comunidades indígenas, mulheres etc., nos chamados Major Groups – o que considero um grande equívoco. São organizações de naturezas diferentes, com demandas e poderes diferentes de definir os rumos da história da humanidade, e deveriam ser tratados separadamente. As ONGs do campo da cidadania ativa e movimentos sociais não têm relação com o setor corporativo e empresarial. Não defendemos as mesmas posições. Assim, somos diluídos no conceito abrangente de sociedade civil, o que não é correto. O setor produtivo privado já detém o capital e os mecanismos de influenciar o e mesmo definir a pauta política dos espaços de poder. Ao colocá-los na mesma posição que as ONGs e indígenas em uma disputa de sentidos, a parte fraca e minoritária perde.

O rascunho zero não enfrenta a questão do modelo de desenvolvimento – mas sim propõe adequações no modelo já existente para torná-lo “sustentável”, sem mudanças estruturais – porque o setor privado, obviamente, não tem esse objetivo. Indústrias e empresas têm aí um papel fundamental de polo produtor de tecnologias “verdes”. Essas tecnologias serão vendidas e deverão promover a redução de emissões. Em outras palavras: esse documento simboliza certa submissão dos Estados nacionais ao capital do setor privado, movimento iniciado justamente a partir dos Objetivos do Milênio, no início dos anos 2000, quando a ONU se dobrou ao poder do capital e passou a atuar a partir de diretrizes ditadas pelos interesses dos países mais ricos e das instituições do sistema financeiro e do comércio mundial.

Os acordos firmados durante o ciclo social de conferências da ONU propunham esse enfrentamento dos padrões capitalistas vigentes?

Nesses acordos perpetrados no ciclo social da ONU, havia uma avaliação de modelo, um certo enfrentamento. Como? Bom, se radicalizarmos a ideia dos direitos – econômico, social, ambiental, sexual etc. – que foram instituídos nessas conferências, construiríamos uma nova arquitetura de modelos de existência no planeta. Claro, esse embate tem permeado toda a trajetória histórica da humanidade – a partir do modelo instituído com a Revolução Industrial – e o modo capitalista de produção agora mostra sinais de que quer se revitalizar por meio de uma concepção verde. Por isso, é difícil entender, mesmo que se trate de uma concepção dita inclusiva. Daí digo que esse rascunho zero é contraditório: ao mesmo tempo em que ele reafirma os acordos passados, que propunham o enfrentamento do modelo econômico capitalista atual e convocavam a humanidade para mudar sua forma de existir a partir de uma série de princípios universais de direitos humanos, que, se realizados, seriam revolucionários, na realidade se contradizem e não se realizam com plenitude. O documento rasteja na retórica, no reducionismo e no esvaziamento dos conteúdos antes firmados a parcas expressões declaratórias.

De quais questões importantes esse rascunho zero não tratou?

Todos os temas transversais (água, energia, cidades, empregos verdes, desastres naturais, mudanças climáticas etc.) foram tratados de forma bem ampla para dar conta das demandas dos major groups. No entanto, não há nenhuma indicação efetiva dos caminhos que deverão ser tomados para tratar dessas questões. As identificações e emendas explicativas desses temas são genéricas e, com isso, pode caber qualquer coisa em seu escopo. Assim, com a identificação de temas prioritários, muitos ficaram de fora. Por exemplo, a questão migratória –, que o Brasil está começando agora, com o Haiti, a vivenciar de maneira mais concreta. Também a questão racial não foi incorporada no documento, o que considero um erro gravíssimo. A divisão de trabalho internacional, o modo de produção e de acumulação de riquezas do mundo se fez à custa de uma relação de exploração de riquezas entre os que têm tecnologia, capital e poder político, e os mais impactados – populações indígenas, mulheres, crianças e populações negras. A questão indígena e da mulher chega até a ser mencionada nesse documento [item 21]. Esses itens, no entanto, além de serem genéricos, não mencionam as populações negras, violadas e discriminadas até hoje. Como se pode não tratar dessa questão em um documento de base que enfatiza a discussão dos três pilares do desenvolvimento sustentável – econômico, social e ambiental – e as relações entre povos, nações e o destino do planeta? Como um documento como esse pode não se comprometer de forma enfática, radical e concreta, com os direitos humanos?

Qual o papel da Cúpula dos Povos em contraposição a essa publicação?

O nosso papel é ter uma postura crítica a esse rascunho zero. Devemos responder a esse documento e ir além: criar mecanismos de diálogo com a sociedade em geral, mostrar equívocos, como a abordagem e as lacunas que ele apresenta.

Há algum ponto que você avalie como positivo nesse documento?

A reafirmação de vários tratados e convenções realizados ao longo das últimas décadas, como o compromisso com o direito e o acesso à informação, com os processos de participação, com democracia, com transparência política, financeira e comercial. Essas afirmações são importantes porque são bases sobre as quais a Cúpula dos Povos pode vincular suas lutas e empreender um debate mais profundo e estrutural, indo muito além do proposto pela ONU. Essas conferencias, que resultaram tratados, convenções, protocolos de intenção, são o marco jurídico internacional que nos permite lutar por povos e sociedades melhores, diversas porem universalizadas em seu direito de existir com dignidade.

 

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