Considerações iniciais sobre o “rascunho zero” do que a ONU acordará na Rio+20

Por Aron Belinky, Vitae Civilis, Comitê Facilitador da Sociedade Civil Brasileira para Rio+20.

“O futuro que queremos” é um documento de 19 páginas, elaborado pelo secretariado da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20. Trata-se do “rascunho incial” (ou zero draft) da declaração que será produzida como resultado do processo oficial dessa conferência, em 22 de Junho de 2012. É uma peça de grande importância, que focalizará as negociações nos próximos meses e que, após aprovada, deverá se tornar – para bem ou mal – uma referência para as políticas e práticas de sustentabilidade nos próximos anos.

Elaborado com base em mais de 6.000 páginas de sugestões recebidas nas consultas prévias e submetido ao processo de negociação consensual da ONU (que tende a tornar ambíguos e aguados os acordos finalmente fechados) esse documento tem evidentes limitações, mas nem por isso deixa de ser importante como pauta de trabalho, como sinalizador político e como alavanca para demandas da sociedade civil.

Em outras palavras, esse documento jamais será um compromisso tão radical e urgente quanto as mudanças que necessitamos para construir uma sociedade equitativa e sustentável, evitando o colapso socioambiental de nossa civilização. Mas, por outro lado, é inadmissível que sirva como instrumento para perpetuar o status quo e postergar importantes medidas que podem e devem ser adotadas imediatamente.

O documento apresentado, assim, precisa ser calibrado para tornar-se uma ferramenta politicamente viável no âmbito da ONU e, ao mesmo tempo, capaz de induzir mudanças e alterar relações de poder. Dessa perspectiva, analisamos o zero draft não pelo que gostaríamos que fosse, mas pelo potencial que apresenta como instrumento para avanço nessa luta.

 

PONTOS EM DESTAQUE

Numa abordagem geral, alguns dos aspectos que mais se destacam no zero draft são os seguintes:

  • A reafirmação dos compromissos com os princípios fundantes do multilateralismo, os direitos humanos e os compromissos assumidos na Rio92 e no “ciclo social” de conferências da ONU é um aspecto positivo do documento. Essa menção explícita, bem como a citação nominal das conferências e acordos pertinentes, traz para a Rio+20 conquistas importantíssimas na sociedade civil nas últimas décadas, a maiorias das quais, infelizmente, ainda permance apenas no papel. É preciso, porém, aprofundar essa conexão, tornando mais visíveis os direitos conquistados, visando efetivá-los e, ao mesmo tempo, convertendo-os em cunhas para contraposição ao excesso de poder e falta de controle, especialmente do poder econômico e corporativo.
  • O reconhecimento amplo da agenda da sustentabilidade é outro ponto positivo do documento, que enumera praticamente todas as áreas mais relevantes hoje focalizadas pelas demandas da sociedade civil global e pelos desafios da sustentabilidade e da equidade. Para a maioria desses temas são apresentadas propostas ou caminhos de ação, porém de maneira pouco equilibrada (em alguns temas há grande detalhamento, em outros quase nada). Há temas importantes – como gênero, dicriminação étnico-racial e xenofobia/migrações – que são apenas mencionados, sem aprofundamento nem apresentação de propostas. É preciso mais equilíbrio e efetividade, além do aprofundamento em vários temas-chave.
  • Apesar dessa agenda ampla, o documento não enfrenta a questão central, representada pelos limites planetários, dramaticamente estressados. Defender simplesmente a erradicação da pobreza é simpático e confortável, se ignorarmos o fato de que existem limites na capacidade de suporte do planeta. O zero draft assume implicitamente que tecnologia e ecoeficiência poderão nas próximas décadas garantir a todos no mundo um padrão de consumo como o hoje desfrutado pelo topo da pirâmide. Mas, frente às evidências científicas, é inegável que mudanças nos padrões de produção e consumo dos mais ricos também serão necessárias. Não se trata de apenas erradicar a pobreza, mas de reconhecer limites planetários e implementar mecanismos de redução das desigualdades, de redistribuição da riqueza.
  • A linguagem positiva mas pouco efetiva é outra característica do documento, que menciona os desafios e ameças à sustentabilidade e à equidade, reconhecendo sua importância e também a de muitas das propostas para enfrentá-los. Mas, ao fazer isso, usa uma linguagem frouxa, que não transmite comprometimento, nem muito menos senso de gravidade e urgência. Em alguns casos, há demandas explícitas e manifestações de compromissos claros, mas são poucos, frente a toda a situação. É essencial ter mais firmeza e compromissos.
  • As propostas concretas visando criar Metas do Desenvolvimento Sustentável e um processo de negociação tendo 2015 como alvo tem um algo positivo, pelo lado da concretude e objetividade. Mas há risco de resvalarem para o reducionismo e a postergação, se não forem acompanhadas de mecanismos claros para garantir sua consistência técnica e a efetividade na participação da sociedade em sua formulação e controle (como, por exemplo, um painel técnico-científico permanente, com especialistas da academia e fora dela).
  • A falta de perspectivas para efetividade é, de modo geral, um ponto fraco do documento, que fala de participação, engajamento da sociedade civil e fortalecimento da governança, mas que traz pouquíssimas indicações concretas nessa direção. Há propostas de ajustes em órgãos da ONU (especialmente no PNUMA e na Comissão de Desenvolvimento Sustentável, com seus desdobramentos), mas nada indica como a participação efetiva e democrática da sociedade seria garantida, e muito menos como seriam estabelecidos reais mecanismos controle social, especialmente sobre o excesso de autonomia do setor privado/corporativo. Exceções positivas nesse sentido são as indicações sobre a necessidade de que grandes empresas prestem contas dos impactos que causam suas atividades, e outros aspectos relacionadas à sustentabilidade.
  • O documento é permeado pela noção (implícita) de que há um papel limitado para os Estados, os quais se colocam como meros formuladores e – um pouco – como planejadores, mas não se responsabilizam pela implementação das decisões, transferida de modo genérico “para a sociedade”. De fato, a experiência pós-Rio92 mostra que pouco efetividade têm as decisões políticas, se não forem traduzidas e assimiladas pela base econômica, social e cultural. Mas é preciso reconhecer também a assimetria de poderes existente, especialmente entre os grandes detentores do capital e os demais atores/segmentos sociais.
  • Não é admissível que os Estados Nacionais abdiquem de seu poder regulador e mediador das relações sociais, políticas e econômicas. É preciso indicar caminhos pelos quais –sem cair na centralização ou em áreas de ineficiência como executor – o Estado exerça seu papel, planejando, compensando assimetrias e empoderando a sociedade. O mesmo se aplica à própria ONU e ao multilateralismo, que não podem declinar de seu papel ordenador global, mesmo sob o pretexto de respeito às peculiaridades locais e ao princípio da soberania nacional.Mas não basta repetir velhas fórmulas: além de usar os mecanismos existentes, é preciso inovar.
  • Como previsto, a “economia verde” assume papel central enquanto mecanismo de implementação e alocação de recursos, traduzidos nas diversas indicações sobre a importância do setor produtivo e dos mercados. Aparentemente buscando criar salvaguardas, o documento traz alertas sobre possíveis distorções que poderia sofrer a economia verde mas, na prática, não aponta como evitá-las. A menção ao engajamento da sociedade nesse processo é superficial e limitada. É preciso aprofundar muito os mecanismos de controle social, para que o poder do ferramental econômico possa com segurança ser posto a serviço do desenvolvimento sustentável.
  • Não obstante, há pontos positivos no campo da economia, por exemplo quando se fala na insuficiência do PIB como métrica para desenvolvimento, na geração de empregos “verdes e decentes”, na eliminação de subsídios nocívos (como os dados ao petróleo e a certas formas de pesca e agricultura) e no uso de instrumentos fiscais e financeiros para efetivar diretrizes de planejamento para o desenvolvimento sustentável.
  • A indicação de fontes para financiamento de todo esse processo, é um dos pontos mais fracos do documento, que se limita a cobrar compromissos de cooperação internacional, ajuda ao desenvolvimento e fundos para investimento, já assumidos e nunca cumpridos. É gritante a ausência de propostas inovadoras apontando para fontes de receita planetárias como, por exemplo, a taxa sobre movimentações no mercado financeiro global.

 

PROXIMOS PASSOS

A sociedade civil brasileira e internacional tem nos próximos meses a importante missão – e a singular oportunidade – de influir decisivamente nos resultados da Rio+20, tanto no processo oficial como fora dele.

Por um lado, podemos propor mudanças no “Futuro que Queremos”, e pressionar para que os governos as adotem. Por outro, devemos nos articular e manifestar autonomamente nossas visões e reivindicações que – por definição – vão muito mais longe e mais fundo que as cabíveis numa negociação oficial ou mercantil.

A sociedade civil organizada tem a grande vantagem de poder atuar tanto dentro como fora do processo oficial: podemos cobrar transformações profundas e radicais, sem com isso deixarmos de participar das negociações e definições formais, junto com governos e outros atores sociais. O mundo é muito mais que a soma dos países.

É hora de ousar e de propor. De acreditar que o futuro que queremos está presente, agora.

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