O Rascunho zero tem mais chance de frustrar do que de atender as expectativas

Entrevista especial com Rubens Born, Vitae Civilis.

As 19 páginas do rascunho zero, documento que servirá de base para as negociações da Rio+20, ao tentar atender as expectativas dos governos e da sociedade civil, “deixa muito a desejar”, pois “não é um documento revolucionário no sentido de apontar grandes transformações”, avalia Rubens Born em entrevista concedida à IHU On-Line por telefone.

Com um “enfoque reformista adaptativo da situação atual”, o rascunho zero propõe o desenvolvimento sustentável com base nos pilares econômico, social e ambiental. No entanto, Born enfatiza que a questão econômica tem que ser discutida de modo que a economia esteja “a serviço da sociedade”. “Nos debates, parece que a transformação econômica vem da mudança do campo da operação das empresas, das tecnologias, quando na verdade precisamos de mudanças no campo das políticas econômicas, da política monetária, fiscal, de crédito, de financiamento internacional de cada país”, reitera.

Para ele, a transformação econômica “exige transformações culturais, institucionais – sobretudo no campo da governança global, nacional e local -, de padrões de consumo e produção, e isso não advêm simplesmente de ganhos de tecnologias verdes ou ambientalmente mais responsáveis”.

Na entrevista a seguir, ele assinala que a Rio+20 deve ser um espaço para a sociedade demonstrar sua insatisfação com o modelo neoliberal e discutir quais são os sistemas econômicos nacionais e internacionais que permitirão garantir o cumprimento dos desafios sociais e ambientais que “já foram definidos na Rio 92 e na Cúpula de Segurança Alimentar, em 1996”. “Precisamos discutir agora, com a transição da economia, quais são os meios e as metas reais e ambiciosas que devemos perseguir”, conclui.

Rubens Born é dirigente do Instituto Vitae Civilis e membro da coordenação do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais pelo Meio Ambiente (FBOMS).

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Que avaliação você faz do rascunho zero, texto-base da Rio+20, divulgado na semana passada? Quais são os pontos mais importantes e mais fracos do documento?

Rubens Born – O rascunho zero é um documento das Nações Unidas, feito por uma burocracia internacional que tem que atender expectativas de governos e da sociedade civil. Então, o documento tem mais chance de frustrar do que de atender as expectativas de todos os atores envolvidos no debate. Nesse sentido, obviamente, ele deixa muito a desejar, quando se trata da perspectiva de grupos da sociedade civil. Não é um documento revolucionário no sentido de apontar grandes transformações: ele propõe um enfoque reformista adaptativo da situação atual.

No item de renovação de compromisso político, o documento reafirma, de maneira fraca, uma série de declarações que já foram dadas, em vez de avaliar as lacunas ou os avanços no compromisso das decisões anteriores. No final desse preâmbulo tem uma frase que diz o seguinte: “reforçar a necessidade de desenvolvimento sustentável das transformações no nível global”. Entretanto, ao ler o documento, tive a impressão de que o texto sugere que as empresas operem essa chamada transformação. Há uma ênfase bastante grande no comportamento empresarial que, obviamente, tem que ser alterada.

IHU On-Line – O texto faz referência às mudanças climáticas?

Rubens Born – Lendo o documento e considerando que o Itamaraty, os diplomatas de outros países e o secretário da ONU falaram que os processos não se misturam, ou seja, que o regime de mudança do clima toma as decisões formais no âmbito das negociações climáticas e a Rio+20 não interfere nesse processo, penso que estamos perdendo uma grande oportunidade de dar orientações políticas fortes quanto à urgência de medidas para reduzir as missões de gás carbônico.

Na COP-17, os governos “colocaram o pé no freio” de maneira muito forte e a Rio+20 tem que ser um espaço para acelerar a tomada de decisões em direção a uma sociedade de baixo carbono, uma sociedade mais solidária, que possa ajudar os países e as comunidades mais vulneráveis a enfrentar as consequências das mudanças climáticas.

IHU On-Line – O documento afirma que entre 2012 e 2015 as nações terão que criar metas para chegar a uma economia verde, as quais serão colocadas em prática em três anos. Como você avalia esse discurso da economia verde e o destaque destinado ao tema neste encontro?

Rubens Born – Não existe uma única visão sobre economia verde, existem muitas e, em função delas, há tensão no debate. Parte da tensão desse debate deriva da discussão de se é apropriado chamar de economia verde ou de nova economia. Penso que não é suficiente ficar na tensão, na polêmica sobre qual rótulo é mais adequado. É preciso, sim, uma transformação radical do modelo econômico que movimenta a humanidade.

Se for chamada de nova, de verde, essa economia deve garantir uma sociedade ambientalmente sadia. Portanto, a discussão não deve ser pautada meramente no uso das tecnologias e nos ganhos de eficiência, mas, sim, no uso de recursos, em como se pode investir mais em energia renovável, aumentar a reciclagem de resíduos, melhorar a qualidade ambiental das habitações, dos centros urbanos. A ecoeficiência é um desafio enorme.

A vida humana ainda é determinada pela racionalidade da economia. Precisamos de uma vida humana tocada pela racionalidade da vida, ou seja, uma racionalidade que não seja meramente antropocêntrica, mas também que não seja extremada no sentido de ser biocêntrico. Temos que cuidar da comunidade da vida, satisfazer e dar dignidade a todos os seres e, com isso, reduzir drasticamente a entropia, erradicar pobreza, combater a desigualdade. Essa transformação econômica exige transformações culturais, institucionais – sobretudo no campo da governança global, nacional e local -, de padrões de consumo e produção, e isso não advêm simplesmente de ganhos de tecnologias verdes ou ambientalmente mais responsáveis.

O debate sobre a transição da economia é necessário, mas eu não gosto muito do modelo que fala que o desenvolvimento sustentável é definido pelos três pilares: econômico, social e ambiental. Se houve avanços na área ambiental e na área social, eles chegaram num certo limite porque não houve a transformação no pilar da economia. Então, compreendo a relevância de a Rio+20 querer discutir a dimensão econômica da vida humana em todas as esferas, mas isso tem que ser feito no sentido de que a economia fique a serviço da sociedade, e não a sociedade a serviço da economia.

IHU On-Line – Então os três pilares estão desarticulados na discussão para erradicar a pobreza e reduzir os impactos ambientais?

Rubens Born – Há um pensamento muito forte de que, com ganhos de ecoeficiência e o uso de novas tecnologias, será possível continuar apostando no crescimento. Então, por trás desse debate que envolve os três pilares, sinto uma persistência na ideia do crescimento. Obviamente, nos países menos desenvolvidos, como a Bolívia, é preciso investir em crescimento para retirar as pessoas dos bolsões de pobreza e miséria, e permitir acesso a melhores condições materiais de vida, acesso a alimentos saudáveis etc. Entretanto, precisamos discutir quais são os sistemas econômicos nacionais e internacionais que permitirão garantir o cumprimento desses desafios e dos objetivos de desenvolvimento sustentável, os quais já foram definidos na Rio 92 e na Cúpula de Segurança Alimentar, em 1996. A ONU tentou sintetizar todos esses objetivos nas metas e objetivos do milênio. Precisamos discutir agora, com a transição da economia, quais são os meios e as metas reais e ambiciosas que devemos perseguir.

Metas

Uma das metas do milênio é reduzir, até 2015, 50% o déficit da população que não tem acesso à água e saneamento. Se esse objetivo fosse atendido, ainda restaria um déficit de 50%. Quando esses outros 50% teriam acesso à água e a saneamento? Que recursos seriam utilizados para atender a essas necessidades? Falta compromisso ético com a resolução de todos esses problemas. Nos debates, parece que a transformação econômica vem da mudança do campo da operação das empresas, das tecnologias, quando na verdade precisamos de mudanças no campo das políticas econômicas, da política monetária, fiscal, de crédito, de financiamento internacional de cada país. Não vejo uma discussão mais forte sobre isso.

IHU On-Line – Qual é a contribuição do Brasil na Rio+20 e quais temas as instituições ambientais e ONGs estão propondo para o debate? Como o governo tem se posicionado diante dessas propostas?

Rubens Born – Sou membro da coordenação do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e Desenvolvimento – FBOMS, uma ampla aliança que se formou dois anos antes da Rio 92 para articular ONGs e movimentos sociais no processo de debates que aconteceram à época. Em 2010, o FBOMS propôs a criação do Comitê Facilitador da Sociedade Civil Brasileira para a Rio+20.

Como a sociedade brasileira é tão diversa e tão rica, decidimos criar no Brasil uma aliança que transcende o FBOMS, até porque a Rio+20 interessa a todos. No âmbito do FBOMS, estamos discutindo o tema de nova economia e economia verde a partir de uma perspectiva dos territórios e da experiência que os grupos da sociedade civil têm em buscar a construção da sustentabilidade e da convivência digna nos biomas. Então, estamos debatendo e construindo propostas que resgatem a experiência de diferentes grupos e redes nos territórios. Queremos que as ONGs que trabalham com o Cerrado, a Mata Atlântica, o Semiárido, a Amazônia etc, se integrem ao FBOMS.

Esse processo de articulação começou em junho do ano passado e tem como objetivo promover a convivência digna e a sustentabilidade nos diferentes biomas e nos territórios urbanos, nos ambientes modificados pelo ser humano, onde também precisa haver dignidade de vida e sustentabilidade, como água potável, coleta de lixo, mobilidade urbana. Nesses debates, estamos discutindo a dimensão de governança, não meramente de governança ambiental, mas que tipo de controles do poder público e do mundo empresarial precisamos criar. Nós entendemos que governança é diferente de governo e governabilidade. Particularmente, entendo que governança se refere a um conjunto de condições que a sociedade dispõe para controlar o destino do seu desenvolvimento e, portanto, controlar quem tem o poder político e o poder econômico. Portanto, governança diz respeito à transparência, mecanismos de participação, acesso à informação, e uma série de outros aspectos que permitem à sociedade civil controlar a atuação do governo e das empresas.

No campo do comitê facilitador, a Cúpula dos Povos também incorpora essa dimensão de olhar a experiência que advêm a partir dos territórios dos atores sociais e, da mesma maneira que o FBOMS, a partir de uma centralidade dos direitos humanos como parte fundamental para os debates acerca de uma nova economia, de uma transição da sociedade.

Colocamos estas questões para o governo brasileiro – há interlocutores de diferentes redes que participam do Comitê Facilitador na comissão nacional. Na quinta-feira, o Itamaraty nos enviou uma mensagem solicitando que, até meados desta semana, enviássemos nossos comentários sobre o rascunho zero. Estamos, portanto, preparando uma análise do documento, a qual será enviada ao governo brasileiro. Estamos utilizando a comissão nacional e outros canais para poder discutir essas questões com o secretariado da ONU, para que nos nossos pontos de vista sejam considerados nas discussões.

IHU On-Line – Considerando o resultado da COP-17, é possível que os governos elaborem um documento base na Rio+20?

Rubens Born – Em plena crise econômica nos países industrializados, e com a ampliação do número de países que estão sendo governados por forças conservadoras, é de se imaginar que, na Rio+20, os representantes governamentais sejam, primeiro, conservadores e, portanto, não ousem. Segundo, que se repita o que aconteceu em outras conferências internacionais, ou seja, chegar a um menor denominador comum. Há esse risco, sim, o qual só poderá ser compensado ou mitigado com uma ampla participação da sociedade civil. Os lideres das principais economias não tiveram a sensibilidade de chegar a um acordo que gerasse avanços na COP-17, e só compareceram às conferências porque houve mobilização da sociedade civil.

Em época de revolução em vários países, de ocupações em Wall Street, acampamentos em praças, temos que mobilizar a sociedade civil em todo o mundo e dizer algumas frases: “Basta do mesmo”; “Temos que ir além das promessas”; “As decisões de Durbam não nos satisfazem”.

Consciência social

Quando me perguntam se vale a pena participar das conferências da ONU, digo que sim, da mesma maneira que é importante estar dentro ou fora do Congresso Nacional pressionado os deputados e senadores a tomarem as decisões que consideramos importantes para construir sustentabilidade e justiça.

Para ter um significado global, a Rio+20 vai precisar da presença de muitas pessoas. Nós temos defendido que as praças em Madri, na Tunísia, em Wall Street, em Brasília, devem ser ocupadas e que as pessoas devem reivindicar mudanças políticas e comportamentais. A Rio+20 poderá ter um êxito na mobilização da sociedade civil e por isso estou engajado nesta causa. Temos que conseguir avanços no diálogo intersetorial, na conjugação de forças ativas da sociedade, porque não sei se um documento elaborado pelos governos terá tanta novidade. Não sou otimista em relação a isso. Certamente eles vão chegar a um documento, mas talvez frustrará muito a nossa expectativa. Por isso, temos que fazer da Rio+20 um momento para demonstrar a insatisfação da sociedade civil e dizer que temos de ir além.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Rubens Born – Temos que garantir que se evitem retrocessos, seja na legislação ambiental ou na maneira usual de se buscar a resolução de problemas. Há uma ameaça gravíssima de aprovação do novo Código Florestal, e dependemos de a presidente Dilma ter a coragem de honrar os compromissos assumidos na campanha eleitoral e vetar esse texto. Há retrocessos no novo Código, inclusive retrocessos que desafiam preceitos que estão na Constituição brasileira. A versão do Código aprovada no Senado agride o conceito de função social da propriedade, agride aqueles que cumpriram a lei até agora, promovendo uma anistia aos que desafiaram a lei brasileira.

O Brasil está acreditando que o pré-sal será a redenção do país para a superação da pobreza. Só que investir em pré-sal significa consumir mais e mais combustíveis fósseis e comprometer as emissões brasileiras para além do ano 2020. O Brasil tinha que se engajar para uma transição radical dos seus planos energéticos, sobretudo, fomentar a energia eólica, solar etc. Hoje, no Brasil, se desperdiça 18% de energia para aquecer água dos chuveiros elétricos. Se reduzíssemos esse consumo, teríamos evitado a construção das usinas de Santo Antônio e Jirau na Amazônia e poderíamos evitar a construção de outras termoelétricas. A posição brasileira é equivocada, põe o Brasil na contramão da história e mantém a alocação de recursos públicos e privados em investimentos que são insustentáveis.

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